A economia circular no ordenamento jurídico brasileiro: desafios para sua institucionalização

Júlia Scholz Karl

juliascholzkarl@gmail.com

Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Florianópolis, SC, Brasil.

Alexandre Augusto Karl

alexandreaugustokarl@gmail.com

Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Florianópolis, SC, Brasil.


RESUMO

As premissas do desenvolvimento sustentável, assim como os novos modelos de negócio sob o rótulo verde, se intensificam e propõem mudanças significativas no modus operandi de consumo e produção. Por estarem orientados à proteção ambiental, requerem maior responsabilidade no que concerne aos impactos socioambientais das cadeias produtivas. Nesse contexto, nota-se a importância de regulamentar a transição às economias verdes, alicerçadas na economia circular, que, não obstante as vantagens econômicas, sociais e ambientais, no cenário brasileiro retrata caráter deficitário em sua regulamentação jurídica. O presente estudo busca apresentar o panorama legislativo da economia circular no Brasil, analisando os desafios de sua institucionalização e aplicação. Para tanto, conduziu-se uma revisão da literatura como meio de identificar estudos afins ao tema. Ao longo da pesquisa, identificou-se um grande potencial para o Brasil, mas há uma falha em sua regulamentação normativa. Como resultado, observa-se que, não obstante os elogios à Política Nacional de Resíduos Sólidos, não há, atualmente, uma norma jurídica impositiva para a transição de um modelo linear para um modelo circular de produção. As certificações, órgãos de controle, barreiras comerciais e as próprias exigências do mercado externo têm sido meios de incentivo à institucionalização da economia circular no Brasil.

Palavras-Chave: Economia Circular; Legislação; Política Nacional de Resíduos Sólidos.


INTRODUÇÃO

A economia circular (EC), ao contrário da tendência linear predominante a partir da revolução industrial, possibilita a geração de ciclos múltiplos no uso de produtos de modo a reduzir a utilização de recursos e, consequentemente, minimizando o desperdício (Ellen Macarthur Foundation, 2013). Entretanto, de acordo com alguns autores (Ellen Macarthir Foundation, 2015; Azevedo, 2015; Kuzma et.al, 2020), as pesquisas em economia circular ainda são recentes, tendo crescimento expressivo datado especialmente a partir de 2015, marco de importantes relatórios publicados pela fundação por meio da série de publicações intitulada “Em direção a uma economia circular”.

Na realização da economia circular, segundo Lawandowski (2016), deve-se quebrar o paradigma do conceito de “fim-de-vida” para o de “berço ao berço”, analisando oportunidades e criando modelos de negócio circulares. Nesse contexto, busca-se incluir técnicas avançadas de manufatura e tecnologia, subtraindo o uso de produtos químicos tóxicos, utilizando fontes de energias renováveis e eliminando os resíduos a partir de modelos de design superiores em todas os produtos, linhas produtivas e sistemas. Dessa forma, pode-se criar oportunidades de trabalho, aumentar a rentabilidade das organizações e mitigar a degradação ambiental (Linder; Sarasini; Loon, 2017).

Considerando o cenário global, nota-se, de acordo com a Ellen McArthur Foundation (2020), que a institucionalização dos princípios da economia circular ainda é um desafio, todavia, quando se refere à União Europeia, um pacote abrangente de política de economia circular foi adotado em dezembro de 2015. Esse pacote de iniciativas incluiu medidas legislativas, conhecido como Plano de Ação da Economia Circular Europeia, que, se implementado, poderá favorecer e impulsionar uma transição para uma economia circular. O projeto europeu apresenta-se como um dos primeiros planos para implementar políticas de economia circular em toda a Europa e no exterior (Ellen Macarthur Foundation, 2020).

Vale ressaltar que, no geral, as grandes indústrias de poucos países têm conhecimento sobre a economia circular, a qual ainda se encontra dispersa nas pequenas e médias empresas. Por ora, observa-se que o campo de estudo da EC, tanto acadêmico quanto industrial, deve ser fomentado pelos governos por intermédio de legislação específica, tributária e fiscal (Stahel, 2016), visto que a classe média irá alcançar 3 bilhões de pessoas por volta de 2030, pressionando cada vez mais o nosso sistema por recursos naturais e aumentando a pressão pública para que as empresas apresentem processos com significativo desempenho sustentável (Kharas, 2017).

Em relação às sanções comerciais impositivas pelo mercado internacional, a economia circular, caso seja negligenciada, pode seguir o mesmo rumo das regras de compliance ou de resíduos perigoso, vide a Diretiva 2002/96/CE dos Resíduos de Equipamentos Elétricos e Eletrônicos, a qual impõe restrições do uso de substâncias perigosas (RoHS). Os países da União Europeia (UE), analisando os impactos dessas substâncias, realizaram iniciativas que atingiram o mercado internacional, pressionando todos os países que tivessem o interesse de continuar exportando produtos para a UE a se adaptarem à essa nova legislação (Silva; Pimenta; Campos, 2013).

Nessa vereda, pode-se analisar que a União Europeia, a fim de mitigar os resíduos gerados no seu plano de ação, de acordo com a Ellen McArthur Foundation (2020), mapeou 54 ações, assim como quatro propostas legislativas sobre resíduos a serem cumpridas até 2030 e 2035, introduzindo novas obrigações, tais como a coleta separada de têxteis municipais e resíduos biológicos e contendo metas para aterro, reutilização e reciclagem. De um lado, observa-se que a China e a União Europeia aplicaram os princípios legislativos e/ou normativos da economia circular em suas políticas públicas, permitindo diferentes abordagens por apresentarem contextos organizacionais diferentes. Assim, vale destacar que os esforços da União Europeia estão centrados em medidas legislativas para fomentar o ecodesign, enquanto na China o foco é a produção mais limpa (Nery, 2017)

Diante disso, por seu turno, os estudos acadêmicos se voltaram para uma tentativa de identificar os princípios da economia circular nas políticas públicas, a fim de evitar possíveis sanções comerciais negativas (Mendes, Ferrarez, Pinto, 2020), as quais, de acordo com a amostra de artigos identificados, se limitaram à Política Nacional dos Resíduos Sólidos e não abordaram práticas legislativas da EC, analisando os desafios da institucionalização da economia circular no Brasil. Por esses motivos, a presente pesquisa tem por objetivo analisar a legislação brasileira, a fim de identificar instrumentos jurídicos que permitam a institucionalização dos princípios da economia circular na cadeia de suprimentos.

Para iniciar tal entendimento, uma revisão da literatura foi conduzida de modo a levantar dados conhecidos para então explorar tal relação e gerar novos conhecimentos. O artigo está dividido em quatro partes, além desta introdução. A primeira apresenta o processo de utilizado para o desenvolvimento da pesquisa. Em seguida, os resultados conceituais obtidos são descritos, dissertando sobre a legislação da economia circular no Brasil, suas práticas e o panorama normativo. A terceira parte se destina a analisar a legislação vigente no Brasil que guarda relação com os princípios de economia circular, especialmente a Política Nacional de Resíduos Sólidos, Política Nacional do Meio Ambiente e outros dispositivos normativos relacionados. Por fim, a última parte expõe as considerações finais do artigo.

MÉTODO

Considerações gerais

Com a finalidade de explorar a legislação brasileira no intuito de identificar as práticas circulares, o presente estudo é caracterizado como descritivo exploratório. Para isso, criaram-se parâmetros de busca com as orientações de Tranfield et al. (2004), a fim de ordenar as etapas do estudo. A seguir, elaboraram-se questões de revisão e parâmetros de pesquisa, os quais foram utilizados nas bases Web of Science e Scopus, sem um horizonte temporal predefinido para a obtenção dos artigos em virtude da necessidade de análise das possíveis leis e ordenamentos jurídicos ambientais que contribuem para a logística reversa e economia circular.

Levando-se em consideração o caráter interdisciplinar da presente pesquisa, a metodologia aqui adotada esteve relacionada às ciências jurídicas pela parte legislativa e análise de normas jurídicas, assim como à engenharia, a qual é fator determinante no entendimento das cadeias de suprimentos circulares, seus conceitos e práticas, a fim de tornar o estudo replicável e conexo com a realidade brasileira. Desse modo, além dos artigos coletados nas bases Scopus e Web of Science, realizou-se uma pesquisa nas assembleias legislativas estaduais e no Congresso Nacional em busca de legislações relacionadas à economia circular.

Ao considerar a finalidade base do presente estudo de apresentar as práticas legislativas da Economia Circular no Brasil, buscando e explorando na literatura dados, relatos e informações que sustentam e dão respaldo à pesquisa, foram elaboradas duas questões de revisão:

QR1) Qual a legislação vigente no Brasil que guarda relação com os princípios de economia circular?

QR2) Quais são os desafios da institucionalização e implementação da economia circular no Brasil?

A QR1 visa identificar a legislação vigente no Brasil que guarda relação com os princípios de economia circular, tendo como base especialmente a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Por fim, a QR2 busca apresentar os desafios da institucionalização da Economia Circular no Brasil.

Localização dos estudos

Para a condução da pesquisa, em face da obtenção de respostas às questões de revisão propostas, criaram-se constructos, palavras-chave e strings de pesquisa nos ambientes das bases de dados Scopus e Web of Science, os quais foram evidenciados no Quadro 1.

F

Quadro 1. Parâmetros de Pesquisa

Seleção e avaliação do estudo

A seleção e avaliação dos estudos teve início na 1ª seleção, com a leitura do título, resumo e palavras-chave; 2ª seleção: introdução, conclusão e busca pelo conteúdo dos artigos; 3ª seleção: leitura completa dos artigos avaliando a qualidade da revista, acessibilidade, conteúdo teórico-empírico e unidade de análise. Assim, a análise e síntese foram conduzidas com a leitura minuciosa dos artigos, observando a legislação aplicada à economia circular.

Na seleção e avaliação do estudo, foram procurados os artigos nas bases de dados propostas. Para a Scopus, limitou-se a pesquisa por estágio de publicação final, tipo de fonte Article, idioma dos artigos em inglês, espanhol e português, auxiliando na reposta às QRs propostas. Na busca inicial, foram encontrados 1256 documentos, os quais após a 1ª seleção resultaram em 96 artigos. Em seguida, 7 artigos na 2ª seleção e 4 artigos na 3ª seleção. Nesse passo, na Web of Science, os filtros tipo de documento article, idioma inglês, espanhol e português foram aplicados. Dessa forma, foram identificados 947 artigos, sendo 63 aplicando-se na 1ª seleção, 9 na 2ª seleção e 5 artigos na 3ª seleção. Em suma, 10 artigos foram resultantes das análises nas duas bases de dados, que, por sua vez, foram inseridos no software Mendeley e eliminados os duplicados, totalizando 10 artigos oriundos das bases de dados para fundamentar às QRs propostas. Ademais, documentos oriundos de relatórios, normativas, leis, propostas de emendas à constituição e artigos relevantes de congressos foram minunciosamente lidos, totalizando 19 documentos e formando, assim, o portfólio bibliográfico da atual pesquisa.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A recepção normativa da economia circular no Brasil: perspectivas do cenário legislativo atual

Para Karl e Scholz-Karl (2022), as operações circulares decorrem do modelo econômico circular, no qual somente existem ciclos fechados, isto é, zero desperdício, de modo que o conceito de economia circular tem recebido cada vez mais atenção de países de todo o mundo como uma alternativa ao atual modelo linear extrair-produzir-descartar.

O instrumento normativo brasileiro a nível federal que atualmente mais se aproxima dos princípios da economia circular é a Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), e o Decreto nº 7.404 de 23 de dezembro de 2010 que a regulamenta. O inciso XII do artigo 3º da PNRS define logística reversa como “instrumento de desenvolvimento econômico e social caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada”.

A definição de logística reversa trazida pela PNRS em muito se assemelha ao conceito de economia circular da Ellen Mac Arthur Foundation, segundo o qual busca eliminar os resíduos e poluição, manter produtos e materiais em uso e regenerar os sistemas naturais. No entanto, economia circular e logística reversa não são expressões sinônimas. A logística reversa, segundo Dantas (2020) é uma das práticas da economia circular.

Nesse contexto, não obstante o desenvolvimento da logística reversa seja uma vertente importante da economia circular que foi institucionalizada normativamente no Brasil, fazem-se necessárias discussões sobre a eficácia dos instrumentos legais previstos atualmente para sua aplicação e o quanto impactam na implementação da economia circular no Brasil. Nesse aspecto, Azevedo (2015, p. 13) tece críticas quanto à eficácia da PNRS na adoção de prática circulares, Eis que, para a autora, as responsabilidades do setor privado e público deveriam ser melhor definidas no sentido de estabelecer prazos peremptórios para a inserção do modelo da economia circular e do seu modo de produção, bem como prever sanções para o descumprimento dos referidos prazos.

Na pesquisa realizada por Paes et.al. (2020), os autores discutiram como a Política Nacional de Resíduos Sólidos – Lei n. 12.305/2010 estaria alinhada com os princípios da economia circular, considerando seu potencial para fechar o ciclo na produção de resíduos sólidos. Por meio do auxílio de políticas ambientais já existentes no Brasil, tais como os institutos da logística reversa e responsabilidade compartilhada, contribui-se na gestão mais eficiente dos resíduos e na implementação da economia circular. Contudo, deve-se considerar as barreiras potenciais para a adoção do gerenciamento de resíduos sólidos a partir da perspectiva da economia circular, tendo em vista que há desafios normativos para a transição para a economia circular na legislação de gerenciamento de resíduos.

Para a Confederação Nacional das Indústrias (CNI, 2019), a transição para a economia circular demanda melhorias na infraestrutura nacional e em políticas públicas, sendo necessário adequar o sistema tributário brasileiro para estimular o melhor uso dos recursos naturais. Nesse viés, as pesquisas desenvolvidas pela CNI (2019) demonstram que a melhoria no uso dos recursos naturais e o aproveitamento de resíduos, como insumos, pelo setor produtivo têm o potencial de gerar novos negócios e mais empregos. Por essa razão, no intuito de fortalecer a transição para um modelo circular, a CNI propõe, em sua agenda para 2021, a elaboração de diretrizes para uma Política Nacional de Economia Circular e a coordenação de estudos, objetivando a definição de uma norma ISO sobre economia circular.

Recentemente, o estado do Paraná estabeleceu, por meio da Lei n. 20.607, de 10 de junho de 2021, o seu Plano Estadual de Resíduos Sólidos (PERS/PR), o qual segue as diretrizes da Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS (Lei n. 12.305/2010). Além da gestão de resíduos, o PERS/PR disciplina a logística reversa dentro do estado, impondo o plano de logística reversa de produtos pós-consumo nos procedimentos de licenciamento ambiental para obtenção da licença de operação e sua renovação.

A legislação estadual inovou ao prever expressamente, pela primeira vez em nível de legislação estadual, o estímulo à adoção da economia circular como um de seus pilares:

“Art. 7º São estratégias do PERS/PR:
IV – a promoção:
b) da adequada segregação, máximo aproveitamento e redução da quantidade de resíduos sólidos destinada a aterros sanitários;
c) da educação ambiental, considerando os princípios da não-geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos, e disposição ambientalmente adequada dos rejeitos;
V – a adoção, o fortalecimento e a expansão da logística reversa de resíduos pós-consumo e a economia circular (...)”.

Ao inserir as premissas de não geração, prevenção e a minimização da geração de resíduos sólidos, a PERS/PR abre espaço normativo para as práticas da economia circular, especialmente a inovação e o design do produto voltados à circularidade.

O PERS/PR (art. 5°) traz ainda a responsabilidade integral dos geradores de resíduos sólidos no estado do Paraná, em respeito ao princípio do poluidor-pagador. Aliás, o PERS/PR (art. 7°) também chama a atenção dos geradores de resíduos sólidos para a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, o que demonstra um passo inicial à transição para a mudança nos processos produtivos, especialmente a ideia de um ciclo fechado.

De modo geral, é de se elogiar as premissas sustentáveis do Plano Estadual de Resíduos Sólidos do estado do Paraná e os princípios orientados à educação ambiental, considerando a ideia de não-geração de resíduos sólidos, caminhando em sintonia com a perspectiva internacional de transição para uma economia circular.

Todavia, não obstante a legislação do estado do Paraná ser um passo à frente na busca pela recepção normativa da economia circular, o Brasil ainda não possui uma legislação vinculante a nível federal que imponha ou conceda benefícios àqueles que incorporem princípios circulares em seus processos produtivos.

Os desafios da institucionalização e implementação da economia circular no Brasil: uma análise a partir da legislação brasileira

A discussão acerca da possibilidade de institucionalização da economia circular no Brasil é algo recente e enfrenta desafios, especialmente no que concerne à ausência de legislação. No âmbito normativo brasileiro, não há legislação federal que discipline ou regulamente o modelo de economia circular nas indústrias.

Atualmente, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), apesar de ser elogiada a nível internacional, segundo Azevedo (2015), falha ao não prever a obrigatoriedade da implementação da logística reversa para todos os tipos de resíduos. Eis que se restringiu tão somente ao rol taxativo de produtos elencados no artigo 33: os agrotóxicos, seus resíduos e embalagens; as pilhas e baterias; os pneus; os óleos lubrificantes, seus resíduos e embalagens; as lâmpadas fluorescentes, de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista; produtos eletroeletrônicos e seus componentes. Os demais produtos, que não compõem essa lista, ficam a critério de termos de compromisso e acordos, o que retira a responsabilidade legal pelo ciclo de vida do produto (Azevedo, 2015).

Para Foster, Roberto e Igari (2016), a possibilidade de realização de acordos setoriais na PNRS, estabelecidos entre o poder público e fabricantes, importadores, distribuidores ou comerciantes, representa o equacionamento das responsabilidades sobre a gestão de resíduos sólidos ao longo das cadeias produtivas, isto é, a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos.

Todavia, observa-se que as responsabilidades pelo ciclo de vida do produto por meio da logística reversa deveriam ser definidas pela PNRS, a fim de estabelecer prazos e sanções para que as empresas sejam obrigadas a criar projetos de inserção do modelo da economia circular no seu modo de produção, haja vista que a escassez de recursos naturais é iminente.

Outro argumento jurídico que reforça a necessidade de criação de instrumentos legais para institucionalização da economia circular é o dever constitucional e coletivo de defender e preservar o meio ambiente previsto no artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB).

Além dos instrumentos normativos acima citados, Stival, Barros e Veiga (2020) mencionam que a Política Nacional do Meio Ambiente, instituída pela Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, também contém objetivos similares aos princípios da economia circular. O artigo 2º, em seu inciso II, ao prever a “racionalização do uso do solo, do subsolo, da água e do ar”, correlaciona-se com o pensamento sistêmico da economia circular. Ainda nesse sentido, o inciso IV, ao tratar dos “incentivos ao estudo e à pesquisa de tecnologias orientadas para o uso racional e a proteção dos recursos ambientais”, caminha de encontro tanto ao pensamento sistêmico quanto à ideia de energia renovável, cujas ideias guardam relação com os princípios da economia circular (Stival, Barros, Veiga, 2020).

Não obstante os instrumentos legais mencionados acima permitirem a implantação de medidas que se correlacionam com os princípios da economia circular, não há, até o presente momento, uma legislação diretamente relacionada a esse modelo de produção. No cenário brasileiro ainda não foi adotada uma política pública efetiva visando a implementação da economia circular, de modo que o Brasil ainda se concentra nas premissas dos três “R”, reduzir, reutilizar e reciclar, à medida que a economia circular vai muito além, trabalhando no próprio design do produto, sob a ótica da não-geração de resíduos (Cosenza et al., 2020). Nesse contexto, Foster, Roberto e Igari (2016) destacam que a China foi o primeiro país do mundo a estabelecer a economia circular como estratégia nacional de desenvolvimento econômico e social por meio de um instrumento normativo federal, isto é, com a Lei de Promoção da Economia Circular de 2008.

Em 2015, em decorrência do Plano de Ação para a Economia Circular da União Europeia, houve um estímulo mundial para a transição da Europa para uma economia circular, de modo a promover o crescimento econômico sustentável. A proposta contém 54 medidas que visam fechar o ciclo de vida dos produtos. Em 2020, com o lançamento do Novo Plano de Ação para a Economia Circular, a Europa passou a tomar iniciativas para o abandono do modelo linear desde a concepção dos produtos (Sereno et al., 2020).

Diante desse cenário internacional, as práticas sustentáveis receberam crescente atenção dos acadêmicos, empresas e formuladores de políticas nas últimas décadas (Sadhukhan et al., 2020; Stahel, 2017). Esse movimento foi intensificado devido aos compromissos globais voltados para a redução das emissões de gases de efeito estufa para enfrentar a escassez de recursos e para repensar a gestão de resíduos (EMF, 2015; Zhang et al., 2019).

Além disso, acordos e políticas internacionais estão exigindo iniciativas relacionadas à sustentabilidade como pré-requisito para os contratos, transformando a adesão a iniciativas sustentáveis em uma vantagem de mercado (Filippini et al., 2019; Juste-Ruiz, 2020). De acordo com Rashed e Shah (2020), as empresas são partes interessadas críticas capazes de acelerar a implementação de práticas sustentáveis descritas na Agenda 2030 das Nações Unidas (ONU, 2015). Pesquisas mostram que o engajamento privado proporciona situações vantajosas para seus próprios negócios, a sociedade e o meio ambiente (Dantas et al., 2020; Scheyvens et al., 2016).

Em suas recentes pesquisas, Assunção (2019) analisou o processo evolutivo da economia circular no Brasil sob a ótica da gestão ambiental e as ações propostas com esse viés. Em sua grande maioria, no cenário brasileiro as ações tomadas têm como base a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Contudo, normas de caráter não impositivo também podem impulsionar a transição a economia circular, tal como a ISO 14006, de 2011, que define os critérios de produção com uso de matéria-prima e produção de produtos que gere menos impactos ao meio ambiente, sob o princípio do ecodesign.

No Brasil, um dos caminhos para sua institucionalização pode ser a criação de uma Política Nacional de Economia Circular mediante a elaboração de norma ISO sobre economia circular. Essa é, inclusive, uma alternativa apoiada pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI). De acordo com a pesquisa feita pela referida confederação em 2019, os principais motivos para a adoção de práticas circulares nas indústrias são a busca pela eficiência operacional (69,2%) e por oportunidades de novos negócios (41,5%). Entre os outros motivos estão: (i) solicitação de clientes (20,8%), (ii) atendimento à conformidade legal (18,5%) e (iii) solicitação de acionistas (7,7%).

Destaca-se, ainda, a criação do programa Circular Economy 100 (CE100), criado no intuito de oferecer colaboração e inovação, reunindo stakeholders relacionados às empresas, governos, academia e organizações para atuarem na transição da economia linear para a economia circular no Brasil. Contando com o apoio do CE100 Global e da Ellen MacArthur Foundation, o programa buscou desenvolver soluções criativas, visando o desenvolvimento sustentável no Brasil, por meio do compartilhamento de conhecimentos e soluções para a mudança do paradigma produtivo brasileiro.

No Brasil, os estudos da Ellen MacArthur Foundation realizados em 2017 tiveram como foco os seguintes setores: agricultura e ativos da biodiversidade, edifícios e construção e equipamentos eletroeletrônicos. De acordo com o relatório (Ellen Macarthur Foundation, 2017), no cenário brasileiro, as certificações ambientais estão sendo adotadas como uma primeira etapa na transição para a economia circular, e, também, para o desenvolvimento de projetos circulares no setor de edifícios e construção. Aliás, a utilização de princípios circulares em novos empreendimentos para evitar entraves lineares tem se revelado como um importante ponto de partida.

CONCLUSÃO

Com a finalidade de fomentar a economia circular, pode-se notar que é necessária uma série de práticas, como a melhoria da reutilização e reciclagem dos resíduos, as quais são apenas atividades de transição dos modelos de negócio. Deve-se ainda analisar e aperfeiçoar todas as etapas do ciclo de vida dos produtos, desde o projeto, produção, uso e reutilização, reduzindo materiais primários e influenciando o consumo global ao realizar que a utilização de um produto ou serviço seja uma prática ecologicamente superior à obtenção e manutenção.

Em razão de suas características mercadológicas e sociais únicas do Brasil e, ainda, com o vasto capital natural, a Fundação Ellen MacArthur visualiza no país um cenário atraente para a transição para uma economia circular, visto que esse modelo produtivo pode contribuir para a construção do capital econômico, social e natural, não obstante a turbulência econômica e as limitações orçamentárias.

Percebe-se que o fomento às práticas circulares deve ser incentivado, não somente na esfera federal, mas no âmbito de cada estado, dadas as peculiaridades em relação aos recursos naturais e bioma brasileiros, assim como os encargos tributários e fiscais. O estado do Paraná, como visto, se destaca entre os demais da federação brasileira por ter sido o primeiro a incorporar a expressão “economia circular” no âmbito legislativo, inclusive disciplinando o princípio da não-geração de resíduos e a educação ambiental a partir das premissas da economia circular.

Nesse contexto, o artigo cumpriu com seu objetivo ao entender as práticas legislativas da Economia Circular brasileira, ao explorar de maneira geral os fundamentos legais da EC no mundo, contribuindo para a obtenção de um ordenamento jurídico fundamentado, embasado e com foco no cidadão, no meio ambiente e no desenvolvimento econômico. Todavia, em que pese a Política Nacional de Resíduos Sólidos ser elogiada, percebe-se que há omissões quanto à economia circular, visto que abordou apenas uma parte dela, isto é, disciplinou a logística reversa, mas omitiu-se ao tratar da responsabilidade pela geração do resíduo. Nesse sentido, ainda é preciso reformar a regulamentação jurídica no Brasil, de modo a contemplar o princípio da não-geração, abordando a responsabilidade pelo consumo e produção desde o design do produto.

Todavia, estudos futuros irão ampliar essa busca em outros sistemas jurídicos, de modo a estabelecer uma análise comparada com outros, visando abrir caminhos para a institucionalização da economia circular na legislação brasileira.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 24 jan. 2022

Aprovado: 5 abr. 2022

DOI: 10.20985/1980-5160.2022.v17n1.1774

Como citar: Karl, J.S., Karl, A.A. (2022). A economia circular no ordenamento jurídico brasileiro: desafios para sua institucionalização. Revista S&G 17, 1. https://revistasg.emnuvens.com.br/sg/article/view/1774