Certificações socioambientais em sistemas agroalimentares: convergências e divergências de atributos

Andrea Rossi Scalco

andrea.scalco@unesp.br
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP, São Paulo, São Paulo, Brasil.


RESUMO

Os produtos alimentares com selos socioambientais diferenciam-se dos convencionais por seguirem normas determinadas por entidades reguladoras que emitem certificados que garantem que as práticas produtivas, seja na agricultura, seja em seu beneficiamento, protegem o meio ambiente, preservam a saúde do consumidor e do trabalhador e respeitam os direitos humanos. Os agricultores/processadores que buscarem a certificação e estiverem de acordo com as normas poderão usar o selo socioambiental em seus produtos. Em razão da profusão de selos socioambientais, muitas vezes esses podem confundir o consumidor no que tange aos seus requisitos. Neste sentido, este artigo se pautou na investigação, por meio de uma análise de conteúdo, dos requisitos das três principais certificações socioambientais presentes no Brasil: sistema orgânico, ISO 14001 e Fair Trade. Foi realizada uma análise do conteúdo abordado nos requisitos dessas certificações socioambientais por meio de suas normas a fim de identificar os atributos, possibilitando averiguar quais aspectos são convergentes e quais são divergentes entre as três certificações. Os requisitos das normas foram categorizados em: Cumprimento da legislação ambiental; Práticas sustentáveis; Preservação da biodiversidade; Desenvolvimento sustentável; Cumprimento da legislação trabalhista; Comércio justo; Responsabilidade social; Rastreabilidade; Organismos não geneticamente modificados; Política ambiental; Produção e comércio regional; Não uso de materiais sintéticos; e Isento de contaminantes. Observou-se a divergência dos atributos presentes nas certificações estudadas, explicitando as diversidades de cada uma delas, mesmo nos atributos convergentes, atendendo as suas particularidades.

Palavras-chave: Certificação Socioambiental; Qualidade de Produto; Selos.


1 INTRODUÇÃO

Os produtos alimentares com selos socioambientais diferenciam-se dos convencionais por seguirem normas determinadas por entidades reguladoras que emitem certificados os quais garantem que as práticas produtivas, seja na agricultura ou em seu beneficiamento, protegem o meio ambiente, preservam a saúde do consumidor e do trabalhador e respeitam os direitos humanos.

Dois conceitos são fundamentais na produção e comercialização de produtos socioambientais: a relação de confiança entre produtor e consumidor, e o controle de qualidade, uma vez que existe a dificuldade do consumidor em avaliar alguns atributos de qualidade do produto na hora da compra. Neste sentido, os bens e serviços podem ser classificados em bens de pesquisa, de experiência e de crença (Douglas, 1992). Os bens de pesquisa são aqueles atributos que são observados no momento da compra, sendo alguns exemplos cor, cheiro e aparência. Os bens de experiência são aqueles atributos que são observados somente após a experiência e consumo. E os bens de crença são aqueles atributos que não são observados e não podem ser medidos nem antes da compra nem após o consumo.

Com respeito aos produtos agroalimentares que foram obtidos por meio de práticas sociais e ambientais predeterminadas, tendo em vista a concepção de sustentabilidade, os seus atributos são considerados atributos de crença. E, neste sentido, é necessário um mecanismo que possa fornecer ao consumidor uma garantia de que aquele produto de fato atende aos padrões socioambientais. A garantia da qualidade dos produtos que utilizam uma abordagem socioambiental como meio de diferenciação de mercado se faz mediante a comprovação de tal informação, uma vez que o consumidor não tem como adquirir informações com respeito à veracidade dos atributos socioambientais dos produtos. Neste sentido, a certificação na produção e comercialização de produtos socioambientais é um instrumento relevante para os produtores e comerciantes, no sentido de informar e garantir ao consumidor que, de fato, o produto adquirido atende aos preceitos socioambientais. A certificação diminui as barreiras comerciais, uma vez que reduz a assimetria de informações, a qual ocorre quando um dos agentes em uma transação comercial possui mais informações sobre confiabilidade, segurança e valor do produto do que o outro agente (Brown; Hillegesist, 2007).

De acordo com Souza (2001), a certificação é o processo em que uma terceira parte - que não possui nenhum vínculo com quem irá ser certificado - assegura, por escrito, que um produto, processo ou serviço obedece a determinados requisitos, através da emissão de um certificado. Os agricultores/processadores que buscarem a certificação e estiverem de acordo com as normas poderão usar o selo socioambiental em seus produtos. Existe uma gama de certificados socioambientais, tais como Orgânico, Fair Trade, Certified Humane, Rainforest, entre outros.

Dentre os selos citados, somente o selo de produto orgânico é compulsório no Brasil, os demais são voluntários. O selo do Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade Orgânica (SisOrg) é o selo oficial criado pelo Estado brasileiro e gerido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), com a finalidade de identificar e controlar a produção nacional de orgânicos. Este selo está em vigor no Brasil desde o início do ano de 2011, e é distribuído apenas para os produtos oriundos de cultivos certificados por auditoria (certificadoras terceiras) ou pelos sistemas participativos de certificação.

Apesar de existirem cerca de 600 selos no país que remetem à sustentabilidade em todas as categorias de produtos, a maioria são selos emitidos de primeira parte, ou seja, pela própria empresa (Vialli, 2010). Os selos se diferenciam pela abrangência, reputação no mercado e rigor. Ainda que os selos tenham o mesmo objetivo, podem diferenciar-se em termos de requisitos a serem cumpridos, alguns sendo mais rigorosos e outros não. No entanto, tais informações não são percebidas pelo consumidor pelo seu desconhecimento.

Diante da profusão de selos socioambientais presentes no mercado, tem-se a seguinte problematização: quais as divergências e convergências em termos de atributos entre as principais certificações socioambientais que são foco de estudo no Brasil, especificamente para produtos alimentares processados?

2 AVALIAÇÃO DA CONFORMIDADE E CERTIFICAÇÃO

A avaliação da conformidade é um processo sistematizado, acompanhado e avaliado de modo que agregue certo nível de confiança a um determinado produto ou serviço (INMETRO, 2017). Pode ser caracterizada referente ao seu agente econômico e social. Assim, a avaliação, de acordo com a ABNT (2008), pode ser:

A avaliação da conformidade, responsável por assegurar a confiança aos consumidores, se faz mediante a certificação, a declaração do fornecedor, a etiquetagem, ou as inspeções e ensaios. Dentre elas, a mais comum, e que faz parte do escopo desse estudo, é a certificação. Esse processo de avaliação é um procedimento com a finalidade de atribuir confiança a um produto, por meio de normas e regulamentos (INMETRO, 2017).

A certificação pode se apresentar mediante duas naturezas distintas, sendo ela a voluntária e a compulsória. As certificações de adesão voluntária são pautadas em normas técnicas, cuja decisão de adquiri-la ou não é totalmente da empresa. A finalidade desse tipo de certificação é mercadológica, uma vez que tem o propósito de levar informação ao consumidor, agregar valor ao produto e conferir vantagem competitiva (ABNT, 2008; Martinez et al., 2008).

Já a compulsória, cujo instrumento de referência é uma regulamentação, demanda a adequação do produtor para que o seu produto possa participar e permanecer em um determinado mercado. A natureza obrigatória se faz necessária em caso de produtos que possam afetar a segurança do consumidor no consumo do produto ou mesmo interferir em um mercado no qual uma das partes, no caso o consumidor, tenha a garantia das características do produto que está consumindo, tendo em vista que, nesse caso, são características relacionadas aos bens de crença (ABNT, 2008; Martinez et al., 2008). Especificamente ao se tratar de produtos com certificados socioambientais, o consumidor "acredita" que, por meio do certificado (ou selo) socioambiental, o produto que está sendo adquirido utiliza práticas na produção e beneficiamento que não impactam negativamente o meio ambiente e o ser humano. Para dar maior confiabilidade ao processo, os organismos certificadores são acreditados por instituições de nível nacional e/ou internacional. Os organismos acreditadores são, geralmente, órgãos do governo ou organizações sem fins lucrativos com atuação nacional ou internacional, responsáveis por impor as regras e que auditam os organismos ou empresas certificadoras e certificações emitidas.

Na definição dos autores Martinez et al. (2008), a certificação é um instrumento cuja atividade-fim é conferir às organizações uma forma de gerenciar e garantir o nível de qualidade atribuída aos seus produtos, contemplando-se, em seu escopo de utilidades, como uma ferramenta de redução da assimetria informacional ao consumidor.

De acordo com a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT, 2017), as certificações servem para assegurar que a produção atende às normas técnicas constantemente e que é controlada. Além disso, a certificação traz vantagens para empresas, dentre elas atestar a eficiência e a eficácia de um produto, um serviço ou um sistema; ganhar força frente à concorrência desleal; melhorar a imagem da organização; assegurar a conformidade do produto, do serviço ou do sistema às suas respectivas normas, entre outras.

O Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (INMETRO) brasileiro é a instituição encarregada de acreditar as certificadoras, as quais devem atender aos critérios exigidos pelo próprio INMETRO, baseados em critérios internacionais. A empresa certificadora recebe o reconhecimento por parte desse órgão, conquistando o reconhecimento para realizar a avaliação da conformidade de determinado produto (INMETRO, 2017).

2.1 Certificações socioambientais

A certificação socioambiental surgiu como consequência de movimentos ambientalistas, sociais e da preocupação de consumidores europeus e americanos com os impactos negativos relacionados à produção dos países tropicais ou em desenvolvimento (Alves et al., 2008).

A partir da década de 1960, os sistemas de produção se tornaram gradativamente menos produtivos, mais dependentes de energia elétrica e ambientalmente mais danosos sobre os recursos naturais. Essas características são consequências dos modelos reducionistas adotados pela “Revolução Verde”, que também acarretou a intensificação das monoculturas em grandes áreas (Pessoa, 2002).

A partir da década de 1970, em decorrência dos acontecimentos da década anterior, a questão ambiental relacionada à produção de alimentos passou a ser um forte diferencial na tomada de decisão por parte dos consumidores, período esse que ficou marcado pela pressão da sociedade junto aos mercados consumidores a fim de introduzirem produtos menos danosos ao meio ambiente e ao grande número de leis ambientais e normas de certificação (Pessoa, 2002).

Em 1971 a International Standardization Organization (ISO), organização mundial de organismos de normatização, instituiu três comitês voltados à questão ambiental, sendo eles: TC-146 – Qualidade do ar, TC-147 – Qualidade da água e TC-190 – Qualidade do Solo, os quais foram mártires da importância dada às normatizações ambientais (Nahuz, 1995).

Foi em 1972 que surgiu a International Federation of the Organic Agriculture Movement (IFOAM), cujo intuito era de estabelecer padrões básicos, que preservassem a diversidade do Movimento Orgânico. Esses preceitos, posteriormente, se tornaram uma base fundamental para a regulamentação orgânica, cerca de vinte anos depois (Alves et al., 2012).

A primeira ideia de certificação socioambiental que se concretizou foi em 1978, na Alemanha, com a criação do selo Blue Angel, o qual é responsável por atestar que os produtos que contêm seu selo são produtos reciclados, com baixo índice de toxicidade. Nessa época, esse selo apresentava critérios para 103 categorias de produtos (Deus et al., 2010).

A década de 1980 ficou fortemente marcada pelo crescimento da relevância atribuída às questões ambientais, especialmente aquelas ligadas à indústria e ao comércio, principalmente norte-americanas e europeias. Em decorrência dessas preocupações, as relações comerciais passaram a se importar mais com os impactos ambientais dos processos industriais de produção, bem como o descarte (Nahuz, 1995). Em decorrência da iniciativa da agência de desenvolvimento holandesa, Solidaridad, que desejava comercializar o café mexicano, foi criado o primeiro rótulo da certificação Fair Trade em 1988 (Fairtrade, 2017).
No final da década de 1980, mais especificamente em 1989, foi criada a certificação Green Seal, a qual impõe parâmetros para produtos, rótulos dos produtos e educação ambiental nos EUA (Deus et al., 2010).

A década de 1990 é lembrada pelo surgimento de diversos selos que ficaram conhecidos no mundo. O primeiro deles foi em 1991, quando surgiu a primeira norma de orgânicos, que estabelecia padrões de produção, processamento, comercialização e importação de produtos de origem vegetal e animal aos países membros do programa Council Regulation da Comunidade Econômica Europeia (CEE), responsável por estas primeiras normas de orgânicos (Alves et al., 2012).

No ano de 1992, surgiu o Ecolabel na União Europeia, com a missão de reduzir as emissões, desperdícios, níveis de ruído e o uso de recursos naturais e energia nos processos produtivos (Deus et al., 2010).

Em 1993 surgiu o primeiro selo ligado ao setor florestal, o Forest Stewardship Council (FSC). Fruto das preocupações com o desmatamento mundial e o destino das florestas, sua geração de valor está em atestar um bom manejo florestal, atendendo a três critérios: ser ambientalmente correto, socialmente benéfico e economicamente viável (FSC, 2017; Sartori; Baccha, 2007; Basso et al., 2012).

Em 1996, foi elaborada a norma da ISO 14001 com a finalidade de assegurar a participação de uma organização em um Sistema de Gestão Ambiental (SGA), cuja implementação tem forte impacto na produção (Avila; Paiva, 2006).

Pode-se dizer que a certificação seria um instrumento que, além de atestar as práticas da produção ambientalmente e socialmente corretas, adiciona valor ao produto. Valor pode ser definido segundo três perspectivas: preço, comportamento do consumidor e estratégia. No que se refere ao “preço”, valor é definido como o trade-off percebido pelos consumidores entre os benefícios recebidos e os investimentos (monetários e não monetários) para a compra do produto/serviço. Do ponto de vista estratégico, valor refere-se a quanto os compradores estão dispostos a pagar por aquilo que a empresa esteja disposta a oferecer-lhes. Já na perspectiva de “comportamento do consumidor”, o valor é definido de acordo com o atendimento às necessidades e desejos do consumidor pelo produto/serviço adquirido. No que se refere aos produtos socioambientais, a diferenciação do produto, como estratégia, busca a sua “descomotização”, e corrobora, dentro de certos limites, que os produtores possam impor o preço dos produtos (Vilckas; Nantes, 2007).

Segundo Cerveira e Castro (1997), que pesquisaram sobre o padrão de consumo de produtos orgânicos na cidade de São Paulo, o principal motivo que leva o consumidor a adquirir produtos orgânicos refere-se à saúde pessoal e familiar. Ressalta-se nesta pesquisa que, dentre oito opções, a preocupação com a preservação do meio ambiente aparece apenas em quinto lugar em ordem de importância.

Braga Júnior et al. (2013) buscaram identificar a intenção de compra de produtos “verdes” relacionada à preocupação ambiental, e concluíram que essa preocupação ainda não está refletindo de forma substancial no comportamento de compra para produtos verdes no varejo. Em outra pesquisa, Braga Júnior e Silva (2013) buscaram identificar a compra declarada dos produtos verdes relacionados com a preocupação ambiental e concluíram que a preocupação ambiental ainda não é um fator que interfere na decisão de compra. Krischke e Tomiello (2009), em pesquisa realizada em um supermercado na cidade de Florianópolis, identificaram que o motivo dos consumidores adquirirem produtos orgânicos refere-se à saúde sob a ótica do estilo ego-trip (consumo de produtos saudáveis) em oposição ao estilo ecológico-trip (consumo de produtos orgânicos frente a uma atitude ecológica e social).

Alguns consumidores compram produtos orgânicos, por acreditarem que aqueles produtos têm algo único, quando comparados com os produtos convencionais, mas, por outro lado, muitos não compram produtos orgânicos por não terem a percepção de que esses produtos são melhores que os produtos normais (Yiridoe et al., 2014).

3 METODOLOGIA

Para determinar as certificações socioambientais que seriam selecionadas para análise, primeiramente procedeu-se a uma revisão bibliográfica sistemática (RBS). Esta RBS identificou artigos nacionais nas bases de dados do portal de periódicos da CAPES que tratavam da temática de certificações ou selos socioambientais. Seguiu-se o protocolo proposto por Levy e Ellis (2006). O resultado desta RBS identificou que, dos trabalhos publicados, 33% tratavam da certificação orgânica, 19% da certificação ISO 14000 e 14% da certificação Fair Trade.

Assim, procedeu-se à análise de conteúdo dos atributos das normas de cada uma dessas certificações. As normas e regulamentos que regem cada certificação com base nos três principais certificados encontrados na revisão bibliográfica sistemática são:

Para identificar os atributos convergentes e divergentes entre os certificados, foi escolhida como melhor estratégia metodológica a análise de conteúdo. Segundo Berelson (1984), um dos pioneiros nos estudos sobre a técnica de análise de conteúdo, esta é “uma técnica de pesquisa que visa uma descrição do conteúdo manifesto de comunicação de maneira objetiva, sistemática e quantitativa”. Do ponto de vista da autora Bardin (1977), a análise de conteúdo se configura como um “conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens.” A análise de conteúdo atualmente pode ser definida como um conjunto de instrumentos metodológicos, em constante aperfeiçoamento, que se presta a analisar diferentes fontes de conteúdos (verbais ou não verbais), sendo eles entrevistas, reportagens, relatórios, documentos, normas, etc. (Silva; Fossá, 2013). Existem várias metodologias para proceder à análise de conteúdo, com várias semelhanças entre elas. Para este estudo será utilizada a metodologia de Bardin (2006), que dividiu as etapas da análise de conteúdo em três: 1) pré-análise, 2) exploração do material e 3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação.

A primeira fase compreende a leitura do material eleito para análise, que no caso desta pesquisa serão os requisitos das normas socioambientais. Nesta fase será possível determinar os indicadores que serão trabalhados na análise. A segunda fase, exploração do material, é o momento que consiste na construção das operações de codificação e no qual são realizados recortes e sucessivos agrupamentos em categorias temáticas até a categorização temática final. A terceira fase compreende o tratamento dos resultados, inferência e interpretação a fim de captar os conteúdos manifestos e latentes contidos em todo o material coletado, que no caso são as normas (Bardin, 2006).

Foi elaborada a leitura das normas e regulamento, os quais foram utilizados para a elaboração dos atributos socioambientais presentes na análise de conteúdo, posteriormente, e enfim distribuiu-se os dados de acordo com a convergência e divergência de atributos.

4 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Com o intuito inicial de sistematizar quais seriam os atributos convergentes e divergentes entre as certificações, fez-se inicialmente a leitura das normas (conteúdo) procurando identificar, em um contexto mais amplo, os atributos relacionados às normas: cumprimento da legislação ambiental, práticas sustentáveis, preservação da biodiversidade, desenvolvimento sustentável, cumprimento da legislação trabalhista, comércio justo, responsabilidade social, rastreabilidade, não OGM, política ambiental, produção e comércio regional, não usar materiais sintéticos e isento de contaminantes.

Após o recorte dos atributos, de maneira transversal entre as certificações socioambientais estudadas, foi analisado o conteúdo dos requisitos das normas, a fim de encontrar os requisitos correspondentes convergentes em relação aos atributos, Quadro 1, e os atributos divergentes.

Ao analisar o Cumprimento da legislação ambiental (1), observa-se que as três certificações entram em concordância em adequação à legislação ambiental vigente, porém, elas apresentam particularidades: no caso da certificação orgânica, a norma não especifica nenhuma instância, seja municipal, estadual ou federal, deixando o entendimento amplo de que toda norma deve ser atendida, já a ISO 14001 diz que a organização deve identificar os requisitos legais aplicáveis a ela, sejam nacionais ou internacionais, municipais, estaduais, departamentais, ordens, regras ou normas de agências regulamentadoras, normas da empresa ou da indústria, relações contratuais ou até mesmo acordos com grupos comunitários ou organizações não governamentais (ONG), e a Fair Trade especifica as áreas da legislação ambiental a serem cumpridas, sendo as legislações pertinentes às áreas de preservação permanente e uso dos recursos naturais.

Ao se voltar às análises para as Práticas sustentáveis (2), é visível que as três certificações se preocupam com os recursos naturais e com os resíduos resultantes de suas operações, bem como seu uso racional, de modo a evitar desperdícios e poluição, e o uso racional de energia elétrica. Vinculado também à questão da redução do desperdício, nota-se que a ISO 14001 e a Fair Trade abordam especificamente as emissões atmosféricas, enquanto que a orgânica menciona apenas o manejo saudável do ar, não havendo aprofundamento em comparação às outras duas certificações. A certificação orgânica diverge das outras duas nesse atributo, uma vez que volta sua atenção às práticas sustentáveis em todo o processo, desde a produção até a distribuição, por fim, a distinção da ISO 14001 está na preocupação com a geração de rejeitos e/ou subprodutos provenientes das atividades da empresa.

Quanto à Preservação da biodiversidade (3), as três certificações têm esse comprometimento, no entanto observa-se uma convergência maior entre a certificação orgânica e a Fair Trade, ressaltando os esforços em relação à proteção, e ao incremento da biodiversidade. Já no que diz respeito ao Desenvolvimento sustentável (4), a certificação orgânica e a Fair Trade têm como pilares do desenvolvimento sustentável os aspectos sociais e econômicos bem delimitados, enquanto na ISO 14001 o desenvolvimento econômico é proveniente da busca pelo alcance de benefícios financeiros e operacionais resultantes da implementação de alternativas ambientais, deixando claro que a base do desenvolvimento sustentável está nas atividades ambientais que a empresa executa.

Dentro do escopo do quarto atributo mencionado no parágrafo anterior, a certificação orgânica ressalta um ponto divergente das demais, o desenvolvimento local, enfatizando o comércio regional, o qual gera uma aproximação na relação do produtor com o consumidor final. A Fair Trade, quando trata o desenvolvimento humano e social, também discorre sobre as relações do produtor com outros elos da cadeia, explicitando a busca pela melhoria das condições de trabalho dos produtores e trabalhadores assalariados, acesso aos direitos básicos, concedendo os benefícios sociais necessários ao bem-estar individual e comunitário, e se distinguindo das demais ao ressaltar a harmonização entre os desenvolvimentos econômico e ambiental. A grande divergência visível na ISO 14001 é a atribuição de um peso maior às ações ambientais, atreladas à prevenção ou mitigação dos impactos ambientais adversos, e à mitigação de potenciais efeitos adversos das condições ambientais na organização, apesar de também utilizar do controle ou influência no modo em que os produtos e serviços da organização são projetados, fabricados, distribuídos, consumidos e descartados.

Quadro 1. Atributos convergentes entre as certificações

F
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Fonte: Elaborado pelos autores.

Os demais atributos convergentes foram observados somente entre a certificação orgânica e a certificação Fair Trade. O atributo Cumprimento da legislação trabalhista (5) está explícito em ambas as normas Orgânica e Fair Trade, e nesse sentido “devem estar de acordo com legislação trabalhista vigente”. No caso da ISO 14001, tal requisito não está explícito, uma vez que trata de uma certificação única e exclusivamente ambiental.

Tendo em vista o Comércio justo (6), a certificação orgânica resume o ponto de vista da justiça, ética e solidariedade nas relações comerciais, enquanto a Fair Trade aborda uma visão mais complexa, partindo da definição do que é o comércio justo em sua concepção, da existência de um relacionamento confiável entre quem compra e quem vende, no qual os compromissos comerciais são firmados em longo prazo, de modo que essas negociações repercutem em investimentos no desenvolvimento social e ambiental dos produtores ou trabalhadores assalariados. Referente à Responsabilidade social (7), as normas convergem ao ressaltar justiça nas relações comerciais e a segurança das pessoas; no caso da certificação orgânica, ela ressalta a oferta de produtos saudáveis, isentos de contaminantes, não colocando em risco a saúde do produtor, do trabalhador e nem do consumidor, e a Fair Trade estipula que haja condições adequadas, salubres e seguras, de acordo com as normas de segurança existentes, para o ambiente de trabalho, entretanto divergem, quando a certificação orgânica se destina à tradição, à cultura e qualquer outra forma de organização social nas relações trabalhistas quando ocorrer em comunidades locais tradicionais, e a Fair Trade explicita o veto ao trabalho infantil, ao trabalho forçado e à discriminação, visando à adequação do empreendimento com a legislação social, promovendo um programa de readequação em caso de alguma legislação não estar sendo atendida. Analisando a Rastreabilidade (8), a certificação orgânica diverge em partes da Fair Trade, tendo em vista que é permitida a comercialização direta entre o produtor e o consumidor final, não sendo necessário um certificado de comprovação, mas sim o vínculo do produtor a uma associação com controle social registrada em algum órgão fiscalizador, seja ele federal, estadual ou distrital conveniado, permitindo acesso dos órgãos fiscalizadores e dos consumidores locais até o local de produção de determinada produção orgânica. Por sua vez, a comercialização de produtos orgânicos, que não via direta, segue da mesma maneira que a determinada pela certificação Fair Trade com auditorias de rastreabilidade. Quanto aos Organismos geneticamente modificados (9), esses são proibidos tanto na certificação orgânica como na Fair Trade. Esse requisito não é obrigatório para a certificação ISO 14001.

O atributo convergente entre as certificações Orgânico e ISO 14001 é a Política Ambiental (10). A Política Ambiental da certificação ISO 14001 confere maior liberdade ao gestor em sua elaboração, assegurando os requisitos mínimos exigidos pela norma (coerência com o propósito e o contexto da organização, a natureza, a escala e os impactos ambientais de seus produtos, atividades ou serviços, proteção do meio ambiente). Já na certificação orgânica, em termos de política ambiental, a organização deve prover o plano de manejo orgânico com questões referentes à produção vegetal, à produção animal, ao extrativismo sustentável e à produção processada.

O atributo Produção e comércio regional (11) está diretamente ligado com o atributo Rastreabilidade (6) da certificação orgânica, pois aferem respectivamente a regionalização dos produtos em âmbito local, onde exista uma relação direta entre produtor e consumidor final, como a feira livre, e a rastreabilidade que deve ter um produto orgânico, vinculado a um órgão de controle social registrado em algum órgão fiscalizador. A certificação orgânica também estipula o Não uso de materiais sintéticos (12), promovendo a independência do empreendimento de fontes de energia não renováveis e adotando métodos culturais, biológicos e mecânicos, ao invés de depender de materiais sintéticos, como defensivos agrícolas. O último atributo desse estudo é ser Isento de contaminantes (13), especificamente na certificação orgânica, de modo que não coloque em risco o meio ambiente e a saúde do produtor, do trabalhador ou mesmo do consumidor.
Em termos de escopo de atributos, fica evidente a certificação orgânica como a mais transversal entre as certificações apresentadas. Nota-se também a convergência entre as três certificações na maioria dos atributos, com algumas divergências dentro do mesmo atributo apresentado.

5 CONCLUSÕES

Esse estudo teve como objetivo a identificação dos atributos convergentes e divergentes entre as principais certificações estudadas no Brasil: a certificação orgânica, Fair Trade e ISO 14000. Apesar de observar uma grande convergência em termos de atributos, pode-se observar que existem algumas divergências na mesma categoria de atributo, explicitando as diversidades de cada uma delas, atendendo as suas particularidades, como, por exemplo, a certificação orgânica fortemente atrelada à produção agropecuária, enquanto a ISO 14001 atrela-se ao âmbito industrial e a Fair Trade configura-se como meio termo entre as outras duas, sendo utilizada desde empreendimentos agrícolas e extrativistas, até mesmo para as agroindústrias. Essas divergências tornam cada certificação única, mesmo referindo-se a um mesmo atributo, reforçando os aspectos que estão mais atrelados ao escopo e à finalidade por que foram criados. No entanto ressalta-se que, em termos de assimetria da informação, há de se destacar que, do lado do consumo, a percepção das fronteiras entre os atributos dos selos é dificilmente percebida, e neste sentido a mensagem que o certificado, por meio do selo, transmite pode trazer uma percepção equivocada da informação que se pretende transmitir.


REFERÊNCIAS

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Recebido: 09 abr. 2019

Aprovado: 06 maio 2019

DOI: 10.20985/1980-5160.2019.v14n2.1523

Como citar: Scalco, A. R. (2019), “Certificações socioambientais em sistemas agroalimentares: convergências e divergências de atributos”, Sistemas & Gestão, Vol. 14, No. 2, pp. 177-187, disponível em: http://www.revistasg.uff.br/index.php/sg/article/view/1523 (acesso dia mês abreviado. ano).